quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Alertas sobre as consequências dos projetos hidrelétricos no Xingu

Dom Erwin Krautler
Bispo do Xingu
Texto de abertura do livro Tenotã-Mo - Alertas sobre as consequências dos projetos hidrelétricos no Xingu

Ao ver, com profunda gratidão, concluído este trabalho, vem-me, de repente, a lembrança do Xingu dos anos 60, época em que aqui cheguei. Jamais se apagam em minha memória as primeiras impressões que tive destas plagas. Estão gravadas, de modo indelével, em meu coração. Vindo da Europa fiquei extasiado contemplandoum dos mais espetaculares espaços que Deus criou. Será um último resto do paraíso perdido?
Este rio caudaloso com suas águas verdes-esmeralda, ora calmas e misteriosas, ora indômitas e violentas, este vale com suas selvas exuberantes, igarapés e igapós, várzeas e imensos campos naturais mudaria a minha vida e dará um rumo todo especial à minha vocação missionária. Encontrei neste mundo verde um povo que ainda estava convivendo pacificamente com a natureza e hauriu seu vigor dos divinos mananciais da Amazônia. Mas já naquele tempo pairou algo como uma Espada de Dámocles em cima da família xinguara.
As ameaças de expulsão do paraíso e de destruição do lar (em grego: “oikos”) já se anunciavam num horizonte cada vez mais sombrio, carregado de presságios de um futuro tempestuoso e sacrílego.
O dia 9 de outubro de 1970 é uma data histórica para o Xingu. Em Altamira já há meses se comentava que “finalmente o progresso vai chegar”. Os comerciantes vibraram com os “rios de dinheiro” que iriam inundar a cidadezinha até então esquecida do mundo e isolado no meio da mata. Para os habitantes da capital Belém o Xingu era sinônimo de terra de “índios selvagens e ferozes”, de região infestada pela malária e outras doenças tropicais. Agora, tudo isso mudaria. Nesse dia de intenso calor chegou a Altamira o Presidente da República, o General Emílio Garrastazu Medici. Já dias antes aterrissaram possantes aviões Hércules na pista de pouso de piçarra para admiração ou espanto da população local só acostumada a ver hidraviões amerissarem nas águas do Xingu ou algum DC-3 da FAB fazer uma escala em Altamira.
O Jornal de São Paulo descreve a visita presidencial: “O general Medici presidiu ontem no município de Altamira, no Estado do Pará, a solenidade de implantação, em plena selva,
do marco inicial da construção da grande rodovia Transamazônica, que cortará toda a Amazônia, no sentido Leste-Oeste, numa extensão de mais de 3.000 quilômetros e interligará esta região com o Nordeste. O presidente emocionado assistiu à derrubada de uma arvore de 50 metros de altura, no traçado da futura rodovia, e descerrou a placa comemorativa (...) incrustada
no tronco de uma grande castanheira com cerca de dois metros de diâmetro, na qual estava inscrito: ‘Nestas margens do Xingu, em plena selva amazônica, o Sr. Presidente da República dá inicio à construção da Transamazônica, numa arrancada histórica para a conquista deste gigantesco mundo verde’”.
Foi a época do “Integrar para não entregar”. Não entendi e jamais entenderei como o presidente podia ficar “emocionado” ao ver uma majestosa castanheira cair morta. Não entendi as palmas delirantes da comitiva desvairada diante do estrondo produzido pelo tombo desta árvore, a rainha da selva. Aplauso para quem e em razão de que? A placa fala da “conquista deste gigantesco mundo verde”. A implantação do marco pelo presidente não passa de um ato cruel, bárbaro, irracional, macabro. O que significa “conquistar”? É “derrubar”, “abater”, “degolar”, “matar”, “assassinar”? Um emocionado presidente inaugura a destruição da selva milenar! Por incrível que pareça, derrubar e queimar a floresta é doravante sinônimo de desenvolvimento e progresso.
Altamira tornou-se famosa de um dia para o outro e o Xingu um novo Eldorado. A propaganda governamental incentivou milhares e milhares de famílias a abandonarem o nordeste das secas periódicas e o sudeste, centro e sul com “pouca terra disponível” e rumarem para a Amazônia onde vastas terras estavam aguardando sua chegada e garantindo melhores condições de vida do que nos estados de origem.
Reportagens sobre o sucesso da empreitada governamental se multiplicaram e tiraram as dúvidas de quem ainda ficou reticente.
Nada, porém, se falou dos povos que habitavam as terras que a Transamazônica cortou de leste a oeste. Aliás o Presidente Medici já não quis saber deles. Simplesmente os ignorou, chamando a região de “terra sem homens” a ser povoada por “homens sem terra”. Na cabeça do general não existiam índios no trecho, porque não podiam existir e se, porventura, existissem, sua existência teria que ser ignorada. A nova rodovia passou a 3 quilômetros da aldeia dos Arara no igarapé Penetecaua. Os índios fugiram com medo do chumbo das espingardas. Foram perseguidos até por cachorros. A brusca e forçada convivência com os “brancos” trouxe a morte à aldeia. Sucumbiram fatalmente a surtos de gripe, tuberculose, malária, até de conjuntivite.
O mundo lá fora nada soube desta desgraça que desabou sobre um povo e continuava a aplaudir a “conquista deste gigantesco mundo verde”. A que preço? O pior estava ainda por acontecer. Jamais me esqueço do dia em que pelas ruas de Altamira corria a notícia de que, finalmente, os “terríveis Araras” haviam sido dominados. Como prova de que o “contato” com os Arara tinha sido “amistoso” e um sucesso total, trouxeram uns representantes daquele povo, até então vivendo livre na selva xinguara. Nus, tremendo de medo em cima de uma carroça, como se fossem algumas raras espécies zoológicas, foram expostos à curiosidade popular na rua principal da cidade. O que na realidade aconteceu no coração e na alma do povo Ugorogmo, quem será capaz de descrever? Os poucos sobreviventes continuam apavorados, na insegurança, como “estrangeiros em sua própria terra”. A demarcação de sua área é sempre de novo protelada.
A rodovia Transamazônica foi inaugurada. Mais uma vez o presidente da República vem a Altamira. Mais uma vez se descerra uma placa de bronze, desta vez incrustada num feio paredão de cimento que se ergue do descampado. A paisagem está mudada. A selva sucumbiu. As palavras continuam bombásticas: “Retornando, depois de vinte meses, às paragens históricas do Rio Xingu, onde assistiu ao início da construção desta imensa via de integração Nacional, o Presidente Emílio Garrastazu Medici entregou hoje ao tráfego, o primeiro grande segmento da TRANSAMAZÔNICA, entre o Tocantins e o Tapajós, traduzindo a determinação do povo brasileiro de construir um grande e vigoroso País. Altamira, 27 de setembro de 1972”.
A “Integração Nacional”, o que realmente é? “Integrar”, pelo que se vê, é, de um lado, agredir violentamente a obra da criação sem nenhum plano que visasse um desenvolvimento sustentável para região, e de outro, impulsionar a migração interna para resolver problemas fundiários nas regiões centro, sudeste e sul do País. Através do desterro de milhares de famílias para a Transamazônica pretendeu-se fazer uma “reforma agrária” naquelas regiões sem mexer com os proprietários de grandes extensões de terra produtivas e improdutivas. Deportando para a Amazônia o excedente de agricultores, os “sem terra”, todos eles potenciais invasores de fazendas, evitar-se-á problemas nos estados de origem dos desterrados e se garante o sossego e a paz para o latifúndio.
Mas, embutido no Projeto de Integração Nacional já se encontrava outro plano. As rodovias que sangravam as florestas cortavam também os grandes rios amazônicos, exatamente nas proximidades das principais quedas d’água, prevendo a médio prazo a possibilidade de construir barragens para geração de energia. A Rodovia Transamazônica foi inaugurada em setembro de 1972. Já em 1975, a Eletronorte contratou a firma CNEC (Consórcio Nacional de Engenheiros Consultores) para pesquisar e indicar o local exato de uma futura hidrelétrica. Em 1979 o CNEC terminou os estudos e declarou a viabilidade de construção de cinco hidrelétricas no Xingu e uma no rio Iriri, escolhendo inclusive os nomes para as mesmas, todos eles indígenas: Kararaô, Babaquara, Ipixuna, Kokraimoro, Jarina e Iriri. Por que nomes indígenas, já que a existência dos povos indígenas deve ser ignorada? Os Juruna, Xipaia-Curuaia, Kayapó, Arara, Assurini, Araweté e Parakanã não contam. Sem dúvida se achará uma “solução” para eles, mesmo
que esta se transforme em “solução final”, a famigerada “Endlösung” que o nazismo encontrou para os judeus. Os nomes indígenas para as hidrelétricas projetadas seriam assim um “in memoriam” para estes povos que, junto com as famílias de seringueiros, pescadores e ribeirinhos, “cediam” suas terras ancestrais para o progresso e desenvolvimento da região. Muitos de nossos conterrâneos sonharam novamente com rios de dinheiro que inundariam nossas cidades. À população local negou-se as informações necessárias para avaliar o projeto. A transparência no fornecimento de dados não fazia parte da estratégia dos órgãos governamentais.
Assim a Igreja do Xingu tomou a iniciativa de denunciar as ameaças que pairavam sobre a região do Xingu e seus povos. Digo “povos”, no plural, pois é esta a realidade do Xingu. Colocamos em pauta nas reuniões das comunidades a verdadeira história da hidrelétrica projetada. Elaboramos cartilhas com dados obtidos algumas vezes até de forma “ilícita” (pelo menos do ponto de vista dos órgãos governamentais).
Os trabalhadores locais traziam informações que ouviam nos acampamentos dos engenheiros.
Pessoas que tinham acesso a informações, no-las passavam de forma secreta com medo de retaliação. Colaboramos com a Comissão Pró-ìndio de São Paulo e passamos a buscar ajuda com especialistas ligados a Universidades Brasileiras e do exterior. Confesso que nem imaginávamos poder contar com um apoio todo especial. A expressão “apoio à nossa causa” nem é apropriada neste caso, pois os índios Kayapó do Alto Xingu, assumiram a “sua” causa que também é nossa, a defesa de “sua” terra e de “seus” direitos que são a terra e os direitos dos demais povos do Xingu. Soube das intenções dos Kayapó apenas algumas semanas antes de acontecer aquilo que eles mesmos denominaram de I Encontro das Nações Indígenas do Xingu, marcado para fevereiro de 1989. Algumas lideranças Kayapó vieram a Altamira e me convidaram para uma reunião. Comunicaram-me sem rodeios que estavam decididos de vir a Altamira para um grande encontro e marcaram a data. Dei-lhes a entender que um encontro deste porte exigia uma intensa preparação e o tempo para isso era muito pouco. Pedi, por isso, que adiassem o evento por alguns meses. Não havia jeito de convencer os líderes Kayapó. Sem meias palavras me disseram: “O encontro está marcado! Queremos que nos ceda a Bethânia! Só isso!” A Bethânia, o Centro de Formação da Prelazia do Xingu, há oito quilômetros de Altamira, tornou-se de 20 a 25 de fevereiro de 1989 a aldeia principal dos Kayapó. O evento que reunia em torno de 600
índios, pintados para guerra, teve enorme repercussão em todo o Brasil e no exterior. A foto que retratou a cena em que a índia Tuíra esfregou um facão na cara de José Antônio Muniz Lopes, então diretor de engenharia da Eletronorte, percorreu o mundo, tornando-se símbolo e uma espécie de logotipo da hostilidade total dos índios em relação às projetadas barragens. Enquanto os Kayapó estavam reunidos na Bethânia as comunidades de Altamira se organizaram num ato público no bairro de Brasília. Levantaram sua voz contra os órgãos do governo que operam na surdina e excluem deliberadamente a sociedade civil da discussão de projetos que afetam a população e o meio-ambiente. A vitória estava do lado dos índios e de todos que se opuseram à concretização do megaprojeto. Kararaô foi arquivado! Aparentemente! A alegria durou pouco. No fim da década de 90 o projeto ressurgiu, se bem que sob outro nome e com roupagem nova. A Eletronorte e demais órgãos governamentais aprenderam dos “erros” da década de 80 e trocaram o modo de agir. Um grupo de especialistas fora contratado que passou a analisar as forças políticas na região. Foram feitas pesquisas sobre os nossos movimentos sociais, as ONGs, os sindicatos, os povos indígenas, tudo no intuito de mapear possíveis focos de resistência ao projeto agora denominado de UHE Belo Monte. O nome “Kararaô”, o grito de guerra, foi substituído pelo bucólico “Belo Monte” para que o povo do Xingu não lembrasse mais o facão da Tuíra e os rostos pintados de urucum dos Kayapó contrários à hidrelétrica.
A estratégia mudou por completo. Nossas lideranças foram continuamente convidadas para reuniões com grupos de técnicos das empresas do governo que, é óbvio, usaram de todos os meios para mostrar o lado positivo do empreendimento. Outro alvo foram os jovens. Patrocinando festas e promovendo excursões à região da UHE Tucuruí procurava-se conquistá-los para idéia de que a hidrelétrica será um bem enorme para a região. Com volumosos presentes o governo aliciou descaradamente as comunidades indígenas. De antemão evitavam-se reuniões com grandes grupos para impedir que a sociedade se organizasse
e discutisse abertamente os prós e contras do projeto. Políticos estaduais e municipais de pouca
cultura e muita fanfarrice encheram a boca proclamando a UHE Belo Monte a salvação do oeste do Pará e pregando que o Brasil necessita deste impulso energético para evitar o colapso de sua economia.
Mas, Deus seja louvado, um grupo de especialistas, professores e pesquisadores de renome, apoiados por instituições e ONGs e a Igreja do Xingu organizaram este livro que, sem dúvida, desmistifica todo o discurso bombástico do Governo Brasileiro e das empresas interessadas na barragem do Xingu. Novamente a espada afiada de Dámocles paira sobre o Xingu e seus povos, pendurada num fio muito delgado, podendo cair a qualquer momento. Mas a lenda contada pelo escritor romano Horácio em uma de suas odas não termina em tragédia. O fio tênue resistiu e a espada não se desprendeu. É esta a nossa esperança! Que a sensatez vença a insanidade e o Xingu continue lindo e pujante, também para as futuras gerações!

3 Responses to “Alertas sobre as consequências dos projetos hidrelétricos no Xingu”

Yúdice Andrade disse...

Muito obrigado pelo convite para conhecer o blog. Espero que seus objetivos sejam alcançados, pois é fundamental esclarecer o cidadão comum sobre os temas aqui abordados. Há muitos discursos falaciosos, cínicos e oportunistas, além de criminosos, para sustentar práticas que tiram do amazônida o que é seu por direito.
Parabéns pela iniciativa.

Blog Xingu Vivo disse...

Professor Yudice, é uma honra receber sua visita. Pode contar conosco para apimentar esse debate até agora dominado pelas previsões catastróficas de empreiteiros e seus satélites, que vão lucrar os tubos com Belo Monte.

Anônimo disse...

necessario verificar:)