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LÚCIO FLÁVIO PINTO lucioflavio@agenciaamazonia.com.br
BELÉM, PA – Os índios reunidos em Altamira declararam que não querem saber da hidrelétrica de Belo Monte no rio Xingu. Disseram-se dispostos a morrer para impedir a obra. Mas não há unanimidade entre eles, como não há entre os brancos. A questão é mais complexa do que eles parecem convencidos. E mais dramática. A intenção de extrair energia do rio Xingu, no Pará, tem 28 anos. Foi em 1980 que começaram os inventários sobre o potencial hidrelétrico da bacia, que drena as águas de 7% do território brasileiro.
Excessos indígenas
Muniz Lopes sofreu apenas um grande susto quando Tuíra partiu para cima dele, pintada para guerra, gritando e manejando sua arma intimidadora. Rezende, porém, ficou com um golpe profundo no braço e com escoriações generalizadas, resultado de murros e chutes dados por vários índios, e não mais apenas por Tuíra, hoje com liderança excepcional para uma mulher por conta da sua decisiva participação nos dois episódios, com intervalo de 19 anos. Outro fato pós-agressão parece indicar nesse sentido: a manifestação do cacique kayapó Jair Bepe Kamró, da aldeia Topkrô, e da índia chipaia Maria Augusta, desaprovando a agressão dos guerreiros kayapó e a favor da usina. Esse primeiro apoio declarado começa a causar fissuras num movimento até então aparentemente monolítico. Em menor escala, essa reversão de situação já aconteceu em outros casos de conflitos semelhantes na Amazônia. A mineradora Paranapanema conseguiu mudar a atitude dos índios waimiri-atroari quanto à exploração da jazida de cassiterita do Pitinga, no Amazonas: de radicalmente contra, a postura se tornou tão favorável que os índios afastaram da área antigos aliados, que não os acompanharam nessa mutação. Também a Companhia Vale do Rio Doce atraiu para si os índios xikrin do Cateté, vizinhos das minas de Carajás e primos dos kayapós. Como essa conversão foi obtida através de aplicações significativas em obras e em dinheiro vivo, além de muitas relações públicas, é bem provável que os mesmos métodos sejam repetidos em favor de Belo Monte. A Eletronorte tem bastante experiência na matéria e já vem atuando dessa maneira junto a algumas tribos na área de influência da usina de Tucuruí, como os parakanãs, e em abordagem cautelosa no Xingu. Com a retração dos kayapós depois da agressão ao engenheiro, o campo está mais favorável a esse tipo de empreitada. E as lideranças do movimento – índias e não-índias – sabem não só dessa possibilidade, como dos seus efeitos quase inevitáveis, considerada a receptividade a tal iniciativa por parte de vários grupos indígenas. Absolvição antropológica Assim, não é de se esperar incursões justiceiras ou intimidatórias, como de uma carga de cavalaria à moda do oeste americano, que no Brasil assume a forma de manobras como a desencadeada pela Operação Arco de Fogo, e sim trabalho de proselitismo e convencimento, à base de benefícios concretos e de dinheiro vivo nas mãos dos líderes tribais. Para a eficácia dessa investida contribuirá o prosseguimento das medidas policiais voltadas para a apuração da agressão em si e dos seus antecedentes. Ainda que a Polícia Federal de Altamira identifique individualmente os agressores e os enquadre penalmente, de tal maneira a autorizar seu indiciamento, denúncia e eventual pronúncia, o processo seguirá um rito longo e complexo até poder produzir algum resultado concreto, se é que chegará a tanto. As implicações antropológicas do ato são um fator suficiente para que o caso acabe prescrito ou feneça pelo meio do caminho. Mas a identificação, caracterização e punição da co-autoria, através dos supostos autores intelectuais do delito, pode ser uma ramificação mais expedida. O delegado Jorge Eduardo Ferreira, da PF de Altamira, que preside o inquérito, quis chegar logo aos “finalmentes” reconstituindo de pronto a trama. Organizações Não-Governamentais, sobretudo estrangeiras, e religiosos da Prelazia do Xingu e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) planejaram o ataque, doutrinando os kayapós para que eles repetissem, com um tom de agressividade a mais, o rito de 19 anos antes. Tudo teria sido providenciado para o revival, agora adicionando ao personagem principal, Tuíra, seus coadjuvantes, os guerreiros, municiados da ferramenta indispensável para conferir dramaticidade à cena: os facões. Foi fácil ao delegado compor uma história completa a partir das imagens da câmara de televisão da loja na qual os facões foram comprados por um dos religiosos envolvidos na programação do encontro. Já estabelecer o nexo causal numa instrução processual na justiça será muito mais problemático – e talvez até inócuo. Se algumas pessoas ou grupos realmente articularam a repetição da dança do facão de Tuíra de 1989, não podiam ter imaginado o ambiente tenso que se formaria em torno da palestra do engenheiro da Eletrobrás. Mais do que apresentar o projeto, como fez Muniz Lopes 19 anos antes, ele comunicou a todos uma decisão: a Eletrobrás vai realizar Belo Monte de qualquer maneira, por estar convencida de que isso é o melhor para o Brasil e que a usina é indispensável para assegurar energia para os brasileiros, evitando o risco de apagões e racionamentos. Rezende declarou que Belo Monte terá a menor relação área inundada/capacidade instalada de energia. Seu reservatório terá 440 quilômetros quadrados, mas metade dessa área já é afogada todos os anos pelo Xingu. Esses 220 Km2 Falta atenção aos índios, sobra arrogância entre os técnicos
BELÉM – Os brancos responsáveis pelo grande projeto não têm dado a devida atenção aos índios que ocupam vários pontos da bacia, considerando-os meras figuras decorativas, sem poder decisório. Acham que podem impor-lhes fatos consumados, como fazem aos demais brancos, que supõem menos favorecidos em fosfato (daí certa arrogância dos técnicos) e sabem que pouco pesam (quando pesam) na balança do poder. Outros índios cercaram o engenheiro e começaram a agredi-lo. O que prenunciava um massacre, contudo, acabou com bem menos danos do que os gestos sugeriam. Talvez porque providencialmente o engenheiro se manteve inerte e submisso (quem sabe, por pavor), ou porque, no fundo, os guerreiros soubessem do limite para aquele ataque. Se fosse um impulso completamente natural, é pouco provável que dele não resultassem ferimentos mais graves. É uma das características dos kayapó quando agridem: podem se tornar muito violentos se contrariados. Outro funcionário da Eletrobrás, que defendeu seu colega, viu o facão de um índio subir e descer várias vezes, roçando ameaçadoramente sua nuca. Mas não foi ferido. Uma vez vencido o susto imediato, nem se preocupou mais em se defender, concentrando sua atenção em Rezende. Ficou claro que, esgotada a mise-en-scène, todos escapariam. Não se pode dizer, entretanto, que o arranjo não tenha sido mais obra dos próprios kayapós, adestrados nesse tipo de prática, do que o que algo eventualmente sugerido por terceiros. Esses índios sabem muito mais sobre o que querem e os meios de alcançar seus objetivos do que os brancos costumam estar dispostos a admitir, sejam parceiros deles ou seus contrários. Sim, alternativas existem Os índios são um instrumento precioso dessa estratégia: qualquer coisa que façam tem repercussão em todo mundo, reforçando um ambiente contrário ao Brasil, uma das quatro potências emergentes do planeta. Esse é um script que pode ser aplicado a qualquer lugar e a qualquer tema da Amazônia, independentemente da sua demonstração. É lançado sobre qualquer grupo que contrarie os exploradores de carne e osso que atuam na região, ou que questione as ações oficiais, tendentes a favorecer estes seus parceiros. Como há realmente empresas e países interessados em conquistar uma presença mais ativa na vasta fronteira amazônica, há sempre verossimilhança nesse discurso, mesmo que ele não resista a um teste mínimo de consistência.
Não há alternativa em prazo comercialmente viável além da fonte hídrica para esses empreendimentos. Do contrário, se quiserem ter continuidade (e querem), eles terão que recorrer a hipóteses ainda mais imediatas, como o carvão, vegetal ou mineral, que é elástico, além do gás, limitado, ao menos por ora. Pelo menos esses interesses, que são concretos e podem ser apontados sem maior elucubração, estão empenhados em que saiam do papel projetos como o de Belo Monte para o Xingu e os de Jirau e Santo Antônio para o Madeira. São interesses incorporados pelo establhishment, tanto no plano federal quanto estadual e municipal, no que se convencionou chamar de “os desenvolvimentistas”, quase sempre a qualquer preço (embora haja os mais sofisticados).
Se a hidrelétrica pode vir a ser o arremate dos males, na situação atual nada assegura que até lá os fazendeiros, madeireiros, assentados, mineradores, garimpeiros e outros “pioneiros” não continuem a contribuir para que esse arremate venha a ter importância decrescente.
O mal maior eles já estão causando – e a oposição que os índios lhes movem tem tido eficácia menor. Em relação a essas frentes, a ofensiva hidrelétrica, por ser incomparavelmente mais concentrada como epicentro, tem uma vantagem notável: ela pode ser mediada por providências acautelatórias embutidas no licenciamento ambiental, inexistente ou meramente formal no caso das hordas de madeireiros, fazendeiros, assentados, garimpeiros e outros atores atomizados, porém corrosivos como cupins.
SAIBA MAIS
▪ Pouco antes da cena de impacto em Altamira, o Tribunal Regional Federal autorizou a retomada dos estudos ambientais de Belo Monte, sustados um pouco antes. Para isso, os empreendedores aceitaram descartar a cláusula de sigilo desses levantamentos, algo completamente absurdo. Mas não foi tocada outra cláusula igualmente inaceitável: os futuros realizadores da obra tratando da sua viabilidade sócio-ambiental, suspeição que devia ser acatada como questão de princípio. Por conta desse detalhe relevante é de se prever mais um capítulo de litígio nessa novela protagonizada pelo grupo Eletrobrás e o Ministério Público Federal. ▪ A história poderia seguir um rumo mais racional e conseqüente. Proponho uma sugestão a exame. A Eletrobrás colocaria na rua um edital para a elaboração dos termos de referência para o EIA-Rima de Belo Monte, com prazo curto (30 dias, por exemplo). Uma comissão decidiria sobre a melhor proposta, comissão da qual participariam representantes das instituições federais de pesquisa da região e do setor elétrico. ▪ O anúncio da decisão seria feito em sessão pública, com direito a questionamentos à deliberação. Definidos os parâmetros dos estudos, uma nova concorrência seria imediatamente aberta para os interessados em produzir o EIA-Rima. A mesma comissão examinaria e deliberaria sobre as propostas, anunciando o resultado em nova sessão pública, aberta aos interessados, excluídos os que pretendessem participar da fase executiva de obras. O estudo de impacto ambiental seria financiado por um fundo público a ser criado com esse objetivo. ▪ Os gastos seriam apropriados como encargos da obra, a serem ressarcidos pelo construtor, obrigado a adotar as normas do EIA-Rima, elaborado independentemente da engenharia, mas incorporadas a ela. O EIA-Rima seguiria o processo de audiências públicas até ser submetido aos conselhos do meio ambiente nacional e estadual, e aprovado. Qualquer cidadão poderia denunciar desvios do projeto e o Conama teria que abrir procedimento de apuração, em rito sumaríssimo, mas prestando contas ao distinto público. ▪ Essa alternativa forneceria todas as informações necessárias para responder a várias questões, que ainda não foram atendidas pelos projetistas de Belo Monte. Desde uma definição convincente sobre a viabilidade técnica e econômica da usina, contestada por gente capaz, até mostrar se é possível manter a integridade do Xingu, conforme as aspirações dos índios, ou se esse é apenas um delirante sonho de verão. ▪ Em vez de partir do pressuposto de que é preciso viabilizar a hidrelétrica, deve-se tomar como premissa uma pergunta ainda maior: por que Belo Monte? E para quem? Para começar pelo verdadeiro ponto de partida, essa pergunta tem que considerar a atual crise de energia, mais uma vez demarcada pelos preços recordes do petróleo, a maior e ainda a mais barata das fontes massivas. ▪ A crise dos hidrocarbonetos está acelerando o estudo e a implementação de alternativas, desde as mais conhecidas (e temidas), como o carvão mineral, até as verdadeiramente revolucionárias, como a solar, a eólica e a fusão nuclear. Cada um desses caminhos tem seu cronograma e suas condições. É preciso considerar com acuidade cada um deles para decidir bem sobre aquela alternativa que, num exame meramente superficial, parece a mais evidente na Amazônia: os rios. ▪ Podemos cometer o erro de travar o fluxo de água em rios fantásticos para criar uma energia que poderá vir de fontes com menor impacto ambiental e social – e, o que agravará ainda mais o erro, mais baratas – quando podíamos dar a essas paisagens selvagens um uso mais avançado e nobre (com a ciência e a tecnologia ajustados para esses fins), na forma de produtos de muito maior valor agregado do que aços ou metais. ▪ O cenário mundial poderá mudar drasticamente se a fusão nuclear, que produzirá energia à base de água, sem o efeito radioativo da fissão nuclear, se mostrar viável. Mas quanto tempo será preciso esperar por essa revolução? E de que maneira nos inseriremos nela? Seremos autores ou apenas espectadores nesse novo capítulo da história da energia produzida pelo homem? ▪ Até lá, como resolveremos os problemas de hoje, alguns deles se tornando de ontem? Respostas a essas e muitas outras perguntas só serão dadas se os especialistas examinarem o ambiente, com os propósitos do saber e do conhecimento, antes que outros personagens se apresentem, com outros papéis.
▪ O benefício de projetos de grande porte como o de Belo Monte é que eles permitem esse trabalho prévio, de inventário, de sondagem. Sem os vícios que o processo apresenta atualmente, o EIA-Rima da hidrelétrica pode ser a oportunidade de ouro, que falta nas outras frentes, como a dos madeireiros ou dos agricultores. O protesto dos índios do Xingu pode servir para dar início a esse momento, mas não como resposta para as dúvidas, que subsistiram à cena de violência. (Site Agência Amazônia de Notícias - 03/07/08) |
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