A oferta de energia no Brasil cresceu 5,9% no ano passado, comparativamente a 2006, passando de 225,9 milhões para 239,4 milhões de toneladas equivalentes em petróleo (tep) – uma unidade de medida que, em parâmetros internacionais, corresponde a mais ou menos 10 mil megacalorias. Segundo dados preliminares do Balanço Energético Nacional (BEN), da Empresa de Pesquisa Energética do Ministério das Minas e Energia (EPE/MME), o grande impulso para este crescimento foi a cana-de-açúcar, com uma alta de 17,1%.
Contudo, se – retirada a parte reciclável – toda fração restante do lixo brasileiro fosse processada em incineradores com tecnologia adequada para tratamento de gases derivados desse processo, o país poderia gerar 5% de sua oferta energética e ainda deixar de depositar no solo estes resíduos. Hoje, em nível nacional, são produzidas 88 milhões de toneladas de lixo por ano. Conforme dados da Política Nacional de Resíduos Sólidos apresentada ao Ministério do Meio Ambiente (MMA) na semana passada, 59% dos resíduos do país vão para lixões e apenas 2,8% são reciclados, uma vez que apenas 327 dos 5.560 municípios brasileiros contam com coleta seletiva . Além do passivo ambiental e dos problemas de saúde pública que representam, os lixões têm sido vistos como um problema crônico que tende a aumentar devido à crescente escassez de áreas livres para abrigá-los, especialmente em regiões metropolitanas, onde a geração de resíduos é mais intensiva e obriga prefeituras a pagar cada vez mais para dispô-los cada vez mais longe.
Geração de metano
"Somente na Região Metropolitana de Porto Alegre, são gerados 30% de todo o lixo do Rio Grande do Sul, e há um projeto para o aproveitamento de gás metano a partir dele", anuncia o professor Nilson Romeu Marcílio, PhD em Engenharia Química da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que não possui detalhes do projeto porque, segundo ele, "trata-se de um empreendimento privado". O aproveitamento do lixo, contudo, é um fato ainda incipiente no Brasil. "Não há uma preocupação ambiental ou energética porque, de modo geral, nunca tivemos problema para dispor o lixo, por tradicionalmente haver muitas áreas livres no país. Mas hoje, a idéia que se dissemina é do lixo como fonte de energia", observa.
O engenheiro Henrique Saraiva, diretor do projeto Usina Verde, vizinho da Coppe, o Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da UFRJ, critica a alternativa do aproveitamento de metano em aterros. "A recuperação desse gás pode ser feita, mas ao final de 12 ou 15 anos, o metano termina e ficam os resíduos no solo, gerando chorume", diz. A constatação é apontada também por Marcílio: "A geração de biogás a partir do lixo confinado em aterros tem uma vida util. Há uma curva de decomposição da matéria orgânica que é de aproximadamente dez anos". Ele explica que mesmo nos melhores projetos de aterros controlados pode haver falhas porque as mantas de impermeabilização não conseguem cobrir uniformemente toda a área onde os resíduos serão dispostos. "Com o movimento de máquinas pesadas sobre o aterro, não é difícil o impacto e o conseqüente deslocamento dessas mantas, aumentando ainda mais a possibilidade de vazamento de chorume", observa. Um caso crônico é o dos resíduos da indústria calçadista no Rio Grande do Sul. "São 120 mil toneladas por ano, trata-se de resíduos que contêm cromo, um elemento tóxico que acaba contaminando o solo. É um problema, basta ver o que aconteceu há alguns anos na Utresa [Usina de Tratamento de Resíduos de Estância Velha denunciada pelo Ministério Público, em 2006, como uma das responsáveis pela mortandade de peixes no Rio dos Sinos, devido a problemas técnicos na estrutura e funcionamento de aterros sanitários]".
Queima energética
A queima energética ou incineração é ainda um assunto que divide opiniões entre técnicos e ambientalistas. Para Saraiva, se realizada em temperaturas acima de 800ºC e até 1.300ºC, com tecnologia controlada de queima e pós-queima, a incineração não gera os temidos dioxinas e furanos, componentes cancerígenos que ambientalistas apontam como o grande problema desse tipo de tratamento dos resíduos para a saúde humana. Na avaliação de Marcílio, da UFRGS, este problema não existe em temperaturas acima de 800ºC e, "para a formação de dioxinas, seria necessária a presença de cloro nos resíduos, em forma de PVC (policloreto de vinil), por exemplo. No caso dos resíduos domésticos, os plásticos que vão para os lixões com esse tipo de rejeito, orgânico, não contêm cloro, são sacolas de polietileno", explica. No Rio Grande do Sul, o órgão ambiental (Fepam) não permite a incineração de resíduos industriais como os da indústria calçadista, nem os domésticos.
No Rio de Janeiro, a Usina Verde tem um projeto com licença de operação concedida pela Fundação de Engenharia do Meio Ambiente do Rio de Janeiro (Feema). "Toda emissão de gases foi controlada por seis meses quando do início do projeto, na etapa experimental, mostrando que as emissões ficam abaixo das exigências do Conama", afirma Saraiva. Projeto criado em 2001 com capacidade para tratar 150 toneladas de lixo urbano por dia, a usina pode gerar 3,2 MWh de energia elétrica, dos quais 2,6 MWh disponíveis para fornecimento externo. Conforme Saraiva, são retirados os materiais recicláveis (papel, papelão, plásticos), e o restante, que são resíduos orgânicos normalmente embalados em sacolas plásticas, vai para a incineração. "Com 150 toneladas desse lixo, dos quais 50% a 60% são orgânicos e 12% a 15% são plásticos, se conseguem 3,2 MW de energia", afirma. "É justamente a presença do plástico que fornece o poder calorífico para se obter essa energia, pois o plástico contém o mesmo teor energético do petróleo", detalha. Saraiva explica ainda que, se forem acrescentados 15% de cimento a esta mistura, é possível produzir tijolos e pisos. "Poderíamos produzir uma casa popular por dia, de 50 metros quadrados, a partir das 150 toneladas de resíduos", pondera, acrescentando que essas 150 toneladas correspondem a 200 barris de petróleo, em energia equivalente.
Atualmente, a Usina Verde processa 30 toneladas de lixo e funciona como uma mostra para visitantes que desejam comprovar o seu funcionamento. O investimento no projeto foi de R$ 30 milhões. "Esta é a única tecnologia brasileira do tipo, e várias indústrias de plásticos vêm se mostrando interessadas em participar da recuperação energética", comenta.
O projeto da Usina Verde detém duas patentes no Instituto Nacional de Propriedade Industrial: a INPI 9404414-7, relativa ao Processo de Mineralização de Resíduos Orgânicos, registrada no Brasil, Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai; e a INPI 9804473-7, referente a hélices turbinadas para lavadores de gases da incineração de resíduos, registrada no Brasil, Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai, União Européia e Austrália.
Na Europa
A Alemanha começou a adoção do processo de aproveitamento energético de resíduos na década de 70. Na região da Bavária, por exemplo, entre 50% e 70% dos resíduos são reciclados, e o restante vai para aproveitamento por incineração controlada. Com 250 mil toneladas de lixo por ano, uma das usinas locais chega a 85 mil MW por hora, funcionando praticamente o ano todo e abastecendo 25 mil casas com quatro moradores cada uma. Além de residências, empresas como a montadora Audi também se beneficiam desta energia. Esta tecnologia é largamente implantada no Japão, por exemplo. O problema para países como o Brasil adotar um processo assim é de duas naturezas. Primeiro, o elevado custo – uma usina dessas, para processar 1,2 mil toneladas/dia de lixo, demandaria R$ 400 milhões para ser implantada e R$ 60 milhões em manutenção anual. Segundo, mas não menos importante, a criação de uma cultura sólida de valorização e separação dos resíduos recicláveis aliada a uma política rigorosa de controle ambiental a partir de legislação e fiscalização adequadas.
No Brasil
A Empresa Metropolitana de Águas e Energia (EMAE) de São Paulo pretende lançar um projeto desta natureza em 2011, mas provavelmente terá que contar com um polpudo investimento de instituições como o BNDES e com incentivos fiscais diversos para poder ter seu start. Conforme Saraiva, a EPE está realizando estudos para conhecer tudo o que é economizado no lixo reciclável brasileiro e qual o teor poderia ser transformado em energia – seria uma espécie de balanço energético dos resíduos nacionais. A reportagem do AmbienteJÁ entrou em contato duas vezes com a Assessoria de Imprensa da EPE para obter maiores informações sobre esta contabilidade, mas, até o fechamento desta edição, não obteve retorno. Saraiva lembra que a questão social num projeto desta natureza é da máxima relevância, uma vez que, para o aproveitamento energético, é necessária uma criteriosa separação dos resíduos, o que amplia a oferta de mão-de-obra para catadores, que, de acordo com ele, podem obter ganho médio de R$ 500 per capita.
Apesar de todos os testes, licenças e certificações, e do uso massivo em países onde a preocupação ambiental está no topo das políticas públicas, a incineração de resíduos é um assunto que historicamente divide técnicos, políticos e ambientalistas. O temor de que mesmo com as melhores tecnologias os projetos possam não ser bem executados assombra entidades como o Greenpeace, que trava uma luta histórica contra incineradores.
Veja amanhã: os argumentos pró e contra o aproveitamento energético de resíduos.
(Por Cláudia Viegas, Ambiente JÁ, 15/07/2008)
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