O romance do grande escritor português Saramago sobre a cegueira descreve como seria um mundo em que todos os seres humanos subitamente ficassem cegos ao mesmo tempo. A leitura desse livro — e o filme baseado nele, apresentado no Festival de Cinema de Cannes — lembram um pouco o que está acontecendo na área de produção de eletricidade no Brasil.
Tradicionalmente — há mais de um século —, eletricidade é produzida em usinas hidroelétricas em nosso país. Só mais recentemente é que usinas térmicas (a carvão e gás natural) foram instaladas, mas ainda representam parcela pequena da produção de eletricidade.
O governo, na década de 1970, tentou introduzir energia nuclear em grande escala, o que logo se revelou opção equivocada, sobretudo numa época em que Itaipu estava sendo construída e havia ainda muitas usinas hidroelétricas a serem concluídas, sobretudo em São Paulo. Foi na década de 1970 que reatores nucleares atravessaram sua fase de ouro, porque a crise do petróleo levou França, Japão e Estados Unidos a procurarem na energia nuclear a auto-suficiência energética, reduzindo suas importações de combustível. Esse não era o caso do Brasil, onde petróleo não era usado para gerar eletricidade. A introdução de energia nuclear em grande escala, na ocasião, era claramente uma estratégia equivocada.
Argumentos do mesmo tipo são usados agora para justificar a retomada da opção nuclear com a instalação de quatro reatores de porte médio no Nordeste, além da conclusão de Angra III. Afora o óbvio conteúdo político-eleitoral dessas sugestões, elas desafiam o bom senso: reatores de médio e pequeno porte estão em desenvolvimento, mas não são ainda disponíveis comercialmente. A indústria nuclear, que era pujante na década de 1970, está praticamente hibernando desde o acidente de Chernobyl. Nenhum reator nuclear foi iniciado nos Estados Unidos nos últimos 30 anos. Além disso, a rede de transmissão de eletricidade, no Brasil, é toda interligada, e a energia que o Nordeste precisa pode vir da Amazônia ou do Centro–Sul. Regionalismo na geração de eletricidade não faz sentido do ponto de vista técnico, mesmo porque os equipamentos para os reatores nucleares não seriam construídos no Nordeste e gerariam pouca mão-de-obra local.
A situação hoje, na área de produção de eletricidade, evoluiu porque os grandes aproveitamentos hidroelétricos, na região Centro-Sul, foram concluídos, e o que resta é o potencial dos rios da Amazônia, que é considerável, além de inúmeros pequenos aproveitamentos na região Centro-Sul.
Devido às vantagens da energia hidroelétrica — do ponto de vista do custo e do meio ambiente — ela é a primeira opção, mas construí-las na Amazônia exibem vários inconvenientes, como a grande distância aos centros consumidores, inundação de áreas indígenas e problemas ambientais, que são não insuperáveis, mas que o governo tem tido muita dificuldade em equacioná-los. Ainda assim, os empreendimentos do Rio Madeira foram licitados, o mesmo podendo acontecer com usinas no Xingu e Tocantins.
A questão é que o modelo de leilão que escolhe o vencedor que construirá as usinas tem, contudo, sérios problemas, uma vez que usa o preço final da energia como único critério de escolha do vencedor. É essa característica do sistema de leilões que tem gerado distorções na evolução do sistema de eletricidade do país, com a construção de usinas termoelétricas (usando carvão importado), que vão no sentido contrário de um desenvolvimento sustentável. Sob esse ponto de vista, o modelo anterior de licitações de usinas elétricas era superior, porque os próprios projetos incorporavam as exigências ambientais e não se tratava apenas de fazer obras pelo menor preço, o que certamente criará problemas no futuro.
Há, além disso, outras opções: a principal das quais é investir em fontes alternativas de energia. A palavra alternativa é um tanto depreciativa, o que não se justifica. Melhor seria chamar tais fontes de não convencionais, em contraste com as fontes tradicionais, que são bem estabelecidas comercialmente, como a hidroelétrica, a termoelétrica e a nuclear.
Entre as fontes não convencionais está a energia elétrica produzida pelo bagaço de cana-de-açúcar, que está despontando, em São Paulo, como grande atividade industrial. Até 2016, a co-geração de eletricidade nas usinas de álcool da região Centro-Sul estará fornecendo à rede elétrica tanta eletricidade quanto Itaipu. O governo de São Paulo está viabilizando a interligação das usinas de açúcar e álcool, onde a eletricidade é gerada, com as empresas de transmissão de energia. E o BNDES criou uma linha especial de financiamento para equipamentos, que privilegia justamente os mais eficientes.
No Norte, energia eólica é a resposta, e se estima que uma outra Itaipu poderia ser instalada usando energia dos ventos. O governo federal tem um instrumento para tornar isso realidade — o Proinfa —, que está se movendo a ritmo lento porque fontes alternativas exigem, freqüentemente, subsídios governamentais, quando são introduzidas, como aconteceu com o Programa do Álcool. À medida que o tempo passa e o volume de produção aumenta, os subsídios se tornam desnecessários. Por isso, não vemos porque o governo não subsidie fontes alternativas como, aliás, decidiu fazer com a energia nuclear, uma vez que, quando concluída, a usina nuclear de Angra dos Reis III produzirá energia elétrica a um custo muito superior às usinas hidroelétricas.
Energias alternativas ou não convencionais não são mais sonhos de cientistas desligados da realidade, mas uma das áreas que mais crescem no mundo todo. Só não está ocorrendo no Brasil, provavelmente pela cegueira de alguns.
(Correio Braziliense - 28/07/08)
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